domingo, 24 de maio de 2020

Não Vire as Costas, Estou Falando com Você


ah, a poesia! oh, a poesia!

"que belo a cor do rouxinol
o canto da cotovia
na charneca florida
a cor do arrebol"

escreve o poeta em sua última antologia
– eu prefiro chamar de florilégio!
ele explica em uma postagem em rede social

a poesia, ah! a poesia, oh! 

“salpico nos meus versos o amor em suspiros
para sobreviver às ninharias do dia-a-dia
e tudo que é belo me arrebata o espírito”

reponde o poeta em uma entrevista em seu blog
– acesse aí o link para comprar o meu último livro!



enquanto isso, o sangue corre debaixo das ponte

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Canibal


Fará mal quem te possuir
se não a chupar até o tutano dos ossos:
será equívoco, errôneo

Pecará, quem te possuir,
se não a eletrificar com a língua quente
experimentando teus temperos naturais:
deixá-la trêmula, quase com medo

E errará duplamente se não a cozinhar bem
mui bem cozida, antes de comê-la o cu

sexta-feira, 22 de março de 2019

Um Poema Sobre Gatos


1
todo poeta deve escrever
(ao menos uma vez na vida)
um poema sobre gatos
mesmo que não os tenha por ignorância
mau-caratismo ou alergia

não confundir com escrever poemas felinos
que isso sequer existe:
felino só pode ser o gato
ou os seus primos selvagens
(a onça, a jaguatirica, o leopardo)
& um poema é um poema é um poema
e nada mais

2
todo poeta deve escrever
(ao menos uma vez na vida)
um poema sobre gatos:
para isso, deve buscar as melhores palavras:
toxoplasmose, descarta-se de imediato
(não há espaço aqui para blasfêmias)

preferível citar garras, caixa de areia
ronronar, bola de pelos
língua áspera, passarinho:
na falta de inspiração
cogitar usar um rato como antagonista
ou uma menina solitária como companhia

3
todo poeta deve escrever
(ao menos uma vez na vida)
um poema sobre gatos

ao fazê-lo que não cometa o disparate
(a heresia)
de compará-los aos cães
ou aos ladrões sorrateiros

se for cometer esse sacrilégio
que o faça em um livro de prosa
e deixe a poesia fora disso



sábado, 23 de fevereiro de 2019

Mariana, Brumadinho e Pompeia

Em meu segundo livro, Elefante, publicado em 2013, escrevi uma série de poemas, todos girando em torno do mesmo tema: a possibilidade do homem permanecer na Terra, extrapolando as limitações de sua breve existência.

Em cada poema especulo sobre uma possibilidade de permanência. Por exemplo, há um poema sobre o homem que permanece por causa de sua fama (sobrevive ao tempo o seu nome e a sua obra); há um poema sobre aquele que permanece mumificado (as crianças incas, as múmias egípcias); há um poema sobre o homem que permaneceu criogenado e que foi encontrado nas montanhas por um grupo de alpinistas, etc e etc...

Um poema em particular me veio a mente um dia desses. Trata-se de um poema sobre os homens de Pompeii, Herculaneum e Stabiæ, que permaneceram, após a morte, petrificados pela lava do vulcão Vesúvio. Hoje resolvi inserir na obra os homens que permanecem – após a morte – soterrados em Brumadinho e Mariana.

No dia que a catástrofe ocorreu – esse crime monstruoso perpetrado pela Vale – me ocorreu uma relação próxima entre esses casos.

Segue o poema, atualizado:




2 – Cemitério de pedras
    b) Pompeii, Herculaneum, Stabiæ, Brumadinho e Mariana
      Lá no alto, o albatroz se mantêm imóvel no ar
                      Echoes, Pink Floyd

Estão guardados
por Hēphaistos                                                  [Ήφαιστος]
ou O Coisa,
do Quarteto Fantástico

Onde a terra vomitou as entranhas   [Dispepsia aguda]
expondo sua congestão              [rochas ígneas extrusivas]
(todo bicarbonato do mundo                 [NaHCO3]
não aplacaria a sua fúria)                               

São milhares de homens
eternizados pelo magma                         [Vesúvio]           
ou pela lama                                           [Vale]
estranhas crisálidas de rocha           [fluxos piroclásticos]
entregues à excursões turísticas
– numerosas & ruidosas –
e seus milhares de olhos digitais

Onde talvez (pouco
se sabe) em outras camadas
se escondam outros fósseis –      [Mammuthus lamarmoræ]
vítimas de semelhante cataclismo        [Kατακλυσμός]
          em outro Æon                             [Farenozóico]

Guardados, como em uma maldição,
sob a pena de possuírem um sono leve
debaixo de pálpebras de pedra


.

domingo, 30 de dezembro de 2018

A Ponte, o rio



1
Depois que perdi os teus abraços e beijos
depois que te perdi por inteira
eu fiquei a pensar:
que abraço
estará enlaçando os teus abraços?
Que beijo
estará beijando os teus beijos?
Que seio
estará roçando o teu seio?

2
Depois que perdi os teus beijos e abraços
perdi-me por inteiro
e fiquei a pensar a pensar
até que as águas tornaram-se turvas
e as estrelas turvas não se revelaram mais nos céus:

em que rio estará boiando o meu corpo? 

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Minha avó coando café

para minha mãe
1
toda vez que alguém reza
em qualquer parte do mundo
para qualquer Maria
reza para ela também

2
uma vez a carreguei no colo
era miúda, octagenária
pesava uma tonelada
estava carregando
– de certa forma –
todo mundo que ela carregara

3
por que ela era mãe da minha mãe
e de diversos modos foi minha mãe também:

quando perdeu o juízo
- a idade avançada e o diabetes -
virou filha da minha mãe
e assim – de alguma forma –
foi minha irmã também:

a ordem das coisas invertidas
ou definitivamente alinhadas




07/08/17

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Os Mortos da Véspera



uma nova guerra se anuncia
antes da chama da anterior se apagar

(aqui havia uma casa
e há fumaça escapando de seus escombros:
talvez alguém tenha sido feliz
onde agora só há destroços)

uma nova guerra se anuncia
antes que as crianças
– que mal sobreviveram à última –
tenham tamanho suficiente para empunhar uma arma
ou saibam pelo menos amarrar o próprio cadarço

um avião risca o céu, anunciando

(ainda sequer enterramos os mortos da véspera)


07/07/17

sábado, 24 de junho de 2017

Àqueles que nos odeiam

Aqueles que nos odeiam
nunca descansam
Movidos por uma paixão
de proporção desmedida
são capazes de tudo
o tempo todo
Algo próximo do insano os impulsiona:
um amor à revelia
(ou às avessas)
que se alegra com a nossa ruína
Não dormem
e se o fazem
não sonham com nada além de estratégias
para alimentar a chama de nossa insônia
Incansáveis em seus propósitos
é impossível mencioná-los
de qualquer forma que seja
e não dimensionar
o tamanho da inveja
que os alimenta
Aqueles que nos odeiam
nunca descansam
Não reconhecem fim de semana
feriado, dia santo:
seriam funcionários exemplares
se ao trabalho se dedicassem
como se debruçam sobre nosso itinerário
Em suas vidas miúdas
estão agora mesmo escolhendo com afinco
o nomes dos fakes
como se fossem
os nomes dos seus futuros filhos
Na falta de um nome
– as vezes falha a inspiração –
um perfil anônimo, em rede social
cumpre a função
Só repetem, afinal
o que seus pais fizeram com os nossos pais
(que isso de ser um merda
quase sempre se herda)


Rafael Nolli
01/06/17

sábado, 25 de março de 2017

A mulher começou a fumar


1
a mulher começou a fumar
não havia nenhum fumante na família
ocorrendo certo desconforto
– desde sempre, pelo que se lembrava –
quando fumavam perto dela

o turno na noite
– em um estacionamento de shopping –
convidava à solidão

às vezes
no descanso do lar, ocorria de ouvir
o som dos pneus, riscando o chão
quando manobravam antes da rampa

2
se lembrava da mãe comentar
– com uma ponta de ironia –
que se não estudasse acabaria secretária
fato que lhe parecia
– no momento
– convenhamos! –
melhor do que aquilo

o pai amenizava
contava nos dedos os diplomados
– só no seu lado da família –
que terminaram assim:
“muito trampo / pouca grana”

uma tia
– um tanto distante na genealogia –
– ele frisava –
tinha devorado os livros
e terminara em um caixa de supermercado
“contando o dinheiro dos outros”

3
certa noite
pegou um guimba no chão
– perto de onde os carros manobravam –
e deu o primeiro trago

não havia um único fumante na família
ela pensava entre um &
    outro trago



sábado, 25 de fevereiro de 2017

Elegia nº 2

1. Quando a indesejável das gentes chegar

o que estiver em andamento findará
& não haverá mãos que o resgate:

o pão com manteiga sobre a mesa
(mordido uma única vez)

a reforma do telhado
(antes da temporada das chuvas)

o poema derradeiro
(abortado na última estrofe –

restando apenas – talvez –
o ponto final)

2
pequenas coisas, de uma banalidade ímpar
exigindo algum engenho & muita paciência:

encontrar o carro estacionado em local ignorado
(em alguma rua nas proximidades –
não mais que dezenas delas em dois quarteirões)

“alguém precisa ir alimentar o gato
& dar de beber às samambaias –
sabe-se aonde guardava as chaves de casa?”

quitar uma pequena dívida no mercadinho
(duas maçãs, uma garrafa de mel, cachaça –
“não há nota”, diz o cobrador meio encabulado)

3
o morto não se enterra sozinho
havendo em torno diversos encargos:

alguém que pague tudo (caixão,
carneiro, lápide)
& seja justo no rateio entre os familiares –
“a cada um segundo as suas possibilidades”

cabendo a outrem a inglória parte
– quem há de fazê-lo sem se lastimar? –
de ligar para a mãe
(aquela que o carregou por 9 meses)
que antes de se desesperar
encontrará forças
para ligar na manicure
& desmarcar o horário



sábado, 18 de fevereiro de 2017

A noite do Rato


1
quando ela avistou o rato cruzando a cozinha
– de um extremo ao outro –
 o pavor que se instalou foi irracional

se se tratasse de um ladrão
o desespero não seria tão grande
talvez tentasse argumentar
dizer: as joias estão na cômoda!
ou pedir clemência: piedade, tenho um filho!

com o rato, não:
não havia diálogo

2
toda a esperança estava ali:
uma ratoeira – comprada às pressas –
armada na varanda
por onde o animal escorreu
passando debaixo
– vão minúsculo – da porta

naquela altura
já não havia para onde ir
nem pra quem pedir ajuda

a noite seria longa e insone
assim como a noite do rato
farejando e varrendo a escuridão
incansável em seu propósito

3
não convém relatar – haveria palavras? –
a reação da mulher, logo pela manhã
ao encontrar um pobre pardal
antes alegre sobre o muro
– isso ela não viu –
debruçado sobre a ratoeira
degolado



quarta-feira, 16 de março de 2016

Pas de deux


A bailarina, desiludida, apertou o corpete novo, escolheu o mais belo tutu, vestiu a meia, prendeu o cabelo num coque apertado, se maquiou, colocou a sapatilha de ponta, deu um laço em cada fita, passou a corda no pescoço e deu sua última pirueta pendurada no ventilador de teto - a pirueta mais longa de toda sua carreira. 


Isaac Ruy

domingo, 24 de janeiro de 2016

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Paraíso

Paraíso. Colagem Rafael Nolli


1
muito além das plantações de agrotóxicos
esquecido depois da derradeira ponte

do último homem que por ali passou
não resta o menor vestígio

o que ele viu – há tantos anos atrás –
é o mesmo que um satélite vê agora
da imensidão do espaço sideral

nenhum dos dois sequer suspeitou


2
onde hoje a árvore produz sombra
o prédio da prefeitura se erguerá

o rio prateado pelo sol
escorrerá
sinistro & pesado
dentro de uma galeria

pouco depois da colina
um sinal de trânsito determinará o fluxo
para o que agora é só vale e vento

3
sobre esse chão as pessoas
conhecerão fome e sede
e lutarão até as últimas forças

onde hoje prospera a grama miúda
a estátua de um boçal apontará o dedo
para a imensidão do espaço sideral


15/08/15



terça-feira, 24 de novembro de 2015

Comèdia

I - Inferno


Nenhuma pista ou clareira
para tentar a aterrissagem
ademais
o trem de pouso emperrado

Retornar ao lar
– oh estações oh castelos! –
e ninguém ter dado pela sua falta


II - Purgatório

A TV ligada para ninguém
– em consultórios ortopédicos –
o cheiro do tédio das atendentes
& o clamor dos telefones

A fila de mulheres pensativas
– nos pronto-socorros –
as crianças tossindo em seus colos
o senhor debruçado sobre as rugas

A ante-sala dos CTI’s
as antecâmaras das policlínicas
os  azulejos brancos,
o ventilador de teto
– nas salas de espera dos centros de radiologia –

e nos demais lugares onde a morte fareja


III - Paraíso


Praticamente nada a fazer senão para o pobre agente do Centro de Controle de Pragas. A nuvem de veneno borrifada sobre as macieiras rouba o brilho das asas dos anjos e embaça o aço de suas espadas. De manhã, o batalhão de arcanjos em ordem unida, treinando para a possível batalha. E é sempre manhã, aonde quer que se vá. Longa manhã de profunda ressaca. Os que leram estão de acordo, é o mesmo paraíso descrito por Dante. Um saco! 

sábado, 24 de outubro de 2015

Um casal se apaixona no banco da praça



1
o casal no banco da praça
até então em encontros casuais
viria a descobrir naquele dia
que a noite
que existe desde tempos imemoriais
fora criada exclusivamente para eles

a mesma noite desde sempre
sendo aperfeiçoada aos poucos
através das eras geológicas
sendo organizada com cautela
para de repente chegar em seu auge

depois daquele dia, tudo ruiria,
e as estrelas começariam a se apagar
uma a uma, até não restar mais nada

2
o casal no banco da praça
viria a descobrir de repente
que a noite que os cobria
vinha sendo, unicamente
para eles, aperfeiçoada

a mesma noite que iluminou os oceanos vazios
a mesma sobre animais já extintos

a mesma noite que
anos a fio
levou os primeiros dos nossos
– imperfeitos, ainda com rabos –
a se abrigarem em cavernas
a passarem horas de medo
sobre os galhos das árvores

3
depois de cumprida a sua tarefa
– iluminar um casal no banco da praça –

a noite iniciava o seu declínio